O realismo pop-fantástico de Miguel Gontijo
Texto de Paulo Laender publicado no blog Dom Total
http://www.domtotal.com/noticias/529449
O realismo pop-fantástico de Miguel Gontijo
Um artista para quem a vida é matéria-prima sobre a qual imprime significados
Por Paulo Laender*
Ao iniciar estas linhas sobre Miguel Gontijo e sua obra, parte dela agora em exposição no Museu Inimá de Paula, na mostra intitulada “Miguel e o Ornitorrinco”, me dei conta da dificuldade de fazê-lo.
Possuidor de primorosa capacidade de articulação das suas idéias, reveladas num depoimento claro e conciso, e na própria execução de suas obras, este artista nos deixa pouco espaço, poucas janelas, por onde conduzir um pensamento indagativo, uma reflexão inquiridora sobre seu trabalho.
Os depoimentos pessoais de Miguel, presentes no documentário, no livro e no catálogo que acompanham a mostra, revelam, com clareza e lucidez a que veio. Resta-nos portanto não tanto escrever ou especular sobre , mas sim, “ ler” suas palavras e a obra apresentada.
Digo “ler a obra” pois ela está composta por imagens simbólicas tão fortes que , para uma sensibilidade mais apurada, elas se apresentam, além da visão estética, como páginas a serem decifradas.
Apesar de afirmar sua descrença na significância da sua própria existência e dos sinais que utiliza em suas composições é, ele mesmo, que nos diz que “a vida não passa de matéria prima sobre a qual imprimo significados”.
“Sempre tive que inventar coisas para me tornar feliz”. Frase que poderia ser expressa também como: é preciso criar um mundo para se viver o mundo.
Pensamentos que resumem o que artistas de fato fazem para suportar a realidade:
“A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar)
“Temos a arte para não perecermos” (Nietzche)
Um mundo particular
E tem sido assim desde que aquele menino de Santo Antonio do Monte, no seu confinamento geográfico, estabeleceu sua estratégia para superar a síndrome mineira de transpor as montanhas em direção ao mar, ao horizonte aberto e às estrelas.
Para tal desde logo Miguel iniciou a criação do seu mundo particular. Estabeleceu sua cumplicidade com seus heróis.Tarzã, Mandraque, Zorro, Fantasma não eram apenas interlocutores mas ícones a serem incorporados e aperfeiçoados pela criação de novos superpoderes como a invisibilidade, o teletransporte e outros que tais que sua imaginação criava para ampliar os limites da sua pequena vida interiorana.
Lembro-me aqui e, anoto, um depoimento de Carl Gustav Jung, em seu livro autobiográfico Memórias, Sonhos e Reflexões, onde ele afirma que o artista nasce da necessidade de suprir a própria carência.
Para tal ele exemplifica com uma situação, vivida por ele próprio quando criança carente , se refugiava no sótão da casa dos seus pais onde criava, montava e escondia pequenos bonecos com os quais dialogava e estabelecia o seu mundo à parte.
O quadro de uma vida
Voltando a Miguel nos identificamos muito com ele no relato da sua passagem pelos bancos escolares quando, ao começo dos anos letivos, iniciava os novos cadernos com as primeiras páginas organizadas, contendo bem intencionadas anotações que, pouco a pouco, iam se transformando em desenhos e suporte para os projetos e heróis do seu mundo paralelo.
E nos episódios em que relata a busca pelo mistério sob o vestido da santa na sacristia e a descoberta da pornografia através dos quadrinhos de Carlos Zéfiro, mestre de todos nós, cujas consequências trouxeram-lhe a necessidade de “ver o interior das coisas” e a cumplicidade com o ato de desenhar , conferindo-lhe, segundo o próprio, sua “patente de artista “.
Dessa escola de tudo desenhar, copiando os heróis dos quadrinhos e, aprimorando cada vez mais o traço, é que Miguel nos trouxe e, apresenta hoje, sua técnica apurada capaz de registrar, com precisão, as imagens e os sinais que a história , por ele contada, o exigem.
No depoimento gravado no documentário, apresentado junto com a mostra, ele afirma que “ A vida inteira tenho pintado um só quadro e que, para fazer outro, teria que nascer novamente.”
Nada mais verdadeiro na performance de um grande artista. Fellini só fez um filme como Rosa também só escreveu um livro embora ambos estivessem registrados em vários rolos , vários volumes.
Leio um pouco mais e constato que a história de Miguel aporta os anos 60 e daí para cá ele se deslancha.
Apesar de “negar” a pintura e a função do pintor, chegando mesmo a amaldiçoá-la em detrimento a outros seguimentos artísticos e estigmatizá-la como trabalho manual a denegrir aquele que o faz, numa clara referência a padrões sociais da antiguidade que, embora longínquos, ainda pairam por agora.
Mãos, vida, inteligência
Permito-me lembrar-lhe o que David Hockney, um dos maiores expoentes universais da pintura contemporânea, no sentido real e verdadeiro do termo, há poucos meses atrás quando, simultaneamente a Damien Hirst, o mago do ilusionismo da outra arte contemporânea, realizavam exposições distintas em Londres; comentando sobre as obras de Hirst, que utiliza dezenas de auxiliares na produção quase industrializada de suas telas.
Disse Hockney: que as mãos do artista são parte vital na criação da pintura.
São elas que transportam, com precisão, todo o processo captado pela visão , transformado pelo cérebro e a emoção do artista, à sua resolução na tela.
No meu entender, por mais preconceituoso e arcaico, este ranço da diminuição do homem pelo seu trabalho manual é um falácia ainda a justificar intenções de segregação.
Basta computar o quanto as mãos acrescentaram historicamente à evolução humana.
Desde o machado de pedra, a flauta de osso, a panela de barro até a nave espacial quantas idéias foram desenhadas, esculpidas ou moldadas por meio delas?
Prezado Miguel, chego mesmo a acreditar que nossas mãos têm vida e inteligência próprias superando , por si só, a muitos seres que por aí proliferam e se julgam algo mais.
Orgulhe-se delas pois, só seres especiais atingem o nível de domínio e controle como os que você alcançou com as suas.E, é por causa desta precisão e virtuosismo, que podemos apreciar a sua obra. Este conjunto de “assemblages” e “falsas colagens” pescadas no imaginário universal.
Realismo pop-fantástico
Revendo agora o meu percurso pela exposição anotei comentários e acrescentei os meus em relação às obras que ia admirando.
Em certo momento perguntei a um crítico de arte conhecido, que se aproximou da obra a qual eu estava observando, como ele classificava o trabalho do artista. Ao que de pronto me respondeu como sendo realismo fantástico ao que lhe acrescentei “realismo Pop fantástico”e ele o admitiu com um sinal positivo com a cabeça.
Sim Miguel os anos 60 lhe brindaram com a ótica pop e o seu realismo fantástico está transbordante das imagens e referências daquele tempo que nos envolveu com a quebra das barreiras de comportamento, com a liberdade sexual, a espiritualidade e até os limites do lisérgico.
Continuando meu percurso cheguei frente ao seu painel intitulado “Um Mais Diferente De Outro”. Um conjunto de 30 obras de 32 x 45 cms cada realizados em bico de pena,acrílica e óleo sobre pvc expandido que , imediatamente, me remontou a um seu parceiro distante: o dadaista-surrealista Marx Ernst com sua coleção de colagens denominada “Uma Semana de Bondade” realizada em 1933, no levante do nazi-fascismo e cujas imagens, retratos da crueldade e da decadência burguesa da época, anteviam a catástrofe em andamento.
Faço esse confronto, esse acareamento histórico, para melhor compreender minha interpretação da sua abordagem.
Enquanto o expoente do surrealismo antecipava os tormentos por vir, na Europa do pré-guerra, você nos contempla com a interpretação da sua/nossa história pop/realista/fantástica. Bem menos catastrófica mas não menos instigante e abrangente que a do passado surrealista.
Substituições e acréscimos
“Brinquedo Proibido” que tive o prazer de visitar junto com José Alberto da Fonseca (proprietário e colecionador da referida obra) está impregnada de linguagem simbólica.
Conhecedor que sou da fotografia original utilizada como modelo para a tela que, mostra Picasso na praia cobrindo e protegendo, com o guarda-sol, sua mulher Jacqueline, numa performance, quase um “happenig”referencial daquele que constitui o mais antigo dos cerimoniais dos machos em relação às fêmeas : a dança da sedução. Atividade na qual os homens só perdem em extravagância e arte para os pavões.
Anoto as substituições e os acréscimos à imagem original que enriquecem, particularizam e recebem sua assinatura como nova obra. Jacqueline está substituida pela mulher de Guernica, trágica e lacrimosa, Picasso, talvez pelo esforço do trabalho de sedução, explode o coração em “pop” CLITCH” enquanto o mar de Cannes é substituido pelas ondas japonesas de Hokusai. Comento ainda, com José Alberto o momento que as cartas de Tarô tão bem definem a cartada do destino que alí acontece:
“A Roda da Fortuna” marcando o destino, o momento do acontecimento, selando a sorte para melhor ou pior e predizendo eventos inesperados a acontecer. “O Enforcado” retrata o próprio Picasso a quebrar o coração no seu esforço de sedução que o devora, ao mesmo tempo que tal sacrifício conduz a uma mudança, uma regeneração, a um renascimento. Transformações que um escorpião como ele soube fazer a vida toda.
Ao que José Alberto me respondeu: “Mas nem sei se Miguel sabe desses significados do Tarô....”. Ao que lhe refutei que o Tarô, como todos os símbolos e os ícones arquetípicos têm vida própria e idependem do nosso conhecimento e vontade. E ainda mais: por se afirmar um utilizador aleatório desses sinais e imagens Miguel está apenas encurtando, ao não postar o consciente entre eles e sua ação, seu encontro com o outro lado.
Mas não vamos aqui discorrer sobre cada obra da mostra. Ela está la´pronta para ser vista e “lida”para quem se interessar um pouco mais. Minha intenção, ao abordar algumas destas realizações, foi apenas um pequeno motivo para mostrar o quanto nelas se pode encontrar.
Quintal e fachada
O artista reafirma a elaboração do seu projeto de forma consciente e pensada e obedece o seu modelo estético. Repudia o onírico e nega o sonho em seu processo criativo.
E assume a não existência da paisagem/fundo para a sustentação dos seus personagens .
Admite, apenas, uma linha divisória imaginária, subjetiva que divide o quadro em plano superior e inferior como sendo a única orientação de referência que, sua postura dadaista, lhe franquia.
Peço-lhe licença para um penúltimo comentário a respeito da paisagem/fundo.
Vendo suas telas tenho a sensação que você as pinta do fundo para a frente, revelando muito mais o “quintal” do que a “fachada”, pela qual me parece você não se interessa.
E não haveria de ser de outra maneira para quem quer dizer o que você diz.
Mas não seria relevante; nesse processo que direciona o seu interesse pela vida e o trabalho - a busca pelo que está por dentro, por debaixo e por detrás- que você Miguel, ao pintar de baixo para cima, de dentro para fora, de trás para diante, incluisse alguns elementos de fachada no fundo físico da tela sacramentando, em definitivo, este fazer inverso?
O último comentário é a respeito do que você considera pejorativo na referência barroca que às vezes lhe imputam. Eu , pelo contrário, prezado Miguel, não consigo ver algo mais elogioso do que a alcunha de barroco, este estado d’alma característico das nossas entranhas Brasil/Mineirianas que tem tocado e acrescentado densidade a seres do porte de Aleijadinho, Niemeyer, Guimarães Rosa e tantos outros.
Quem sabe um dia, depois de você aceitá-lo, poderemos defini-lo como algo ainda mais transcendente, quase inclassificável e mágico , bem à sua altura:
Miguel Gontijo é um pintor pop/realista/barroco/fantástico.
Miguel e o Ornitorrinco
Trabalhos de Miguel Gontijo. Museu Inimá de Paula. Rua da Bahia, 1.201, Centro. Tel: (31) 3213-4320. Terça, quarta, sexta-feira e sábado, das 10h às 19h; quinta-feira e domingo, das 12h às 21h. Até 7 de janeiro. Entrada franca
Ao iniciar estas linhas sobre Miguel Gontijo e sua obra, parte dela agora em exposição no Museu Inimá de Paula, na mostra intitulada “Miguel e o Ornitorrinco”, me dei conta da dificuldade de fazê-lo.
Possuidor de primorosa capacidade de articulação das suas idéias, reveladas num depoimento claro e conciso, e na própria execução de suas obras, este artista nos deixa pouco espaço, poucas janelas, por onde conduzir um pensamento indagativo, uma reflexão inquiridora sobre seu trabalho.
Os depoimentos pessoais de Miguel, presentes no documentário, no livro e no catálogo que acompanham a mostra, revelam, com clareza e lucidez a que veio. Resta-nos portanto não tanto escrever ou especular sobre , mas sim, “ ler” suas palavras e a obra apresentada.
Digo “ler a obra” pois ela está composta por imagens simbólicas tão fortes que , para uma sensibilidade mais apurada, elas se apresentam, além da visão estética, como páginas a serem decifradas.
Apesar de afirmar sua descrença na significância da sua própria existência e dos sinais que utiliza em suas composições é, ele mesmo, que nos diz que “a vida não passa de matéria prima sobre a qual imprimo significados”.
“Sempre tive que inventar coisas para me tornar feliz”. Frase que poderia ser expressa também como: é preciso criar um mundo para se viver o mundo.
Pensamentos que resumem o que artistas de fato fazem para suportar a realidade:
“A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar)
“Temos a arte para não perecermos” (Nietzche)
Um mundo particular
E tem sido assim desde que aquele menino de Santo Antonio do Monte, no seu confinamento geográfico, estabeleceu sua estratégia para superar a síndrome mineira de transpor as montanhas em direção ao mar, ao horizonte aberto e às estrelas.
Para tal desde logo Miguel iniciou a criação do seu mundo particular. Estabeleceu sua cumplicidade com seus heróis.Tarzã, Mandraque, Zorro, Fantasma não eram apenas interlocutores mas ícones a serem incorporados e aperfeiçoados pela criação de novos superpoderes como a invisibilidade, o teletransporte e outros que tais que sua imaginação criava para ampliar os limites da sua pequena vida interiorana.
Lembro-me aqui e, anoto, um depoimento de Carl Gustav Jung, em seu livro autobiográfico Memórias, Sonhos e Reflexões, onde ele afirma que o artista nasce da necessidade de suprir a própria carência.
Para tal ele exemplifica com uma situação, vivida por ele próprio quando criança carente , se refugiava no sótão da casa dos seus pais onde criava, montava e escondia pequenos bonecos com os quais dialogava e estabelecia o seu mundo à parte.
O quadro de uma vida
Voltando a Miguel nos identificamos muito com ele no relato da sua passagem pelos bancos escolares quando, ao começo dos anos letivos, iniciava os novos cadernos com as primeiras páginas organizadas, contendo bem intencionadas anotações que, pouco a pouco, iam se transformando em desenhos e suporte para os projetos e heróis do seu mundo paralelo.
E nos episódios em que relata a busca pelo mistério sob o vestido da santa na sacristia e a descoberta da pornografia através dos quadrinhos de Carlos Zéfiro, mestre de todos nós, cujas consequências trouxeram-lhe a necessidade de “ver o interior das coisas” e a cumplicidade com o ato de desenhar , conferindo-lhe, segundo o próprio, sua “patente de artista “.
Dessa escola de tudo desenhar, copiando os heróis dos quadrinhos e, aprimorando cada vez mais o traço, é que Miguel nos trouxe e, apresenta hoje, sua técnica apurada capaz de registrar, com precisão, as imagens e os sinais que a história , por ele contada, o exigem.
No depoimento gravado no documentário, apresentado junto com a mostra, ele afirma que “ A vida inteira tenho pintado um só quadro e que, para fazer outro, teria que nascer novamente.”
Nada mais verdadeiro na performance de um grande artista. Fellini só fez um filme como Rosa também só escreveu um livro embora ambos estivessem registrados em vários rolos , vários volumes.
Leio um pouco mais e constato que a história de Miguel aporta os anos 60 e daí para cá ele se deslancha.
Apesar de “negar” a pintura e a função do pintor, chegando mesmo a amaldiçoá-la em detrimento a outros seguimentos artísticos e estigmatizá-la como trabalho manual a denegrir aquele que o faz, numa clara referência a padrões sociais da antiguidade que, embora longínquos, ainda pairam por agora.
Mãos, vida, inteligência
Permito-me lembrar-lhe o que David Hockney, um dos maiores expoentes universais da pintura contemporânea, no sentido real e verdadeiro do termo, há poucos meses atrás quando, simultaneamente a Damien Hirst, o mago do ilusionismo da outra arte contemporânea, realizavam exposições distintas em Londres; comentando sobre as obras de Hirst, que utiliza dezenas de auxiliares na produção quase industrializada de suas telas.
Disse Hockney: que as mãos do artista são parte vital na criação da pintura.
São elas que transportam, com precisão, todo o processo captado pela visão , transformado pelo cérebro e a emoção do artista, à sua resolução na tela.
No meu entender, por mais preconceituoso e arcaico, este ranço da diminuição do homem pelo seu trabalho manual é um falácia ainda a justificar intenções de segregação.
Basta computar o quanto as mãos acrescentaram historicamente à evolução humana.
Desde o machado de pedra, a flauta de osso, a panela de barro até a nave espacial quantas idéias foram desenhadas, esculpidas ou moldadas por meio delas?
Prezado Miguel, chego mesmo a acreditar que nossas mãos têm vida e inteligência próprias superando , por si só, a muitos seres que por aí proliferam e se julgam algo mais.
Orgulhe-se delas pois, só seres especiais atingem o nível de domínio e controle como os que você alcançou com as suas.E, é por causa desta precisão e virtuosismo, que podemos apreciar a sua obra. Este conjunto de “assemblages” e “falsas colagens” pescadas no imaginário universal.
Realismo pop-fantástico
Revendo agora o meu percurso pela exposição anotei comentários e acrescentei os meus em relação às obras que ia admirando.
Em certo momento perguntei a um crítico de arte conhecido, que se aproximou da obra a qual eu estava observando, como ele classificava o trabalho do artista. Ao que de pronto me respondeu como sendo realismo fantástico ao que lhe acrescentei “realismo Pop fantástico”e ele o admitiu com um sinal positivo com a cabeça.
Sim Miguel os anos 60 lhe brindaram com a ótica pop e o seu realismo fantástico está transbordante das imagens e referências daquele tempo que nos envolveu com a quebra das barreiras de comportamento, com a liberdade sexual, a espiritualidade e até os limites do lisérgico.
Continuando meu percurso cheguei frente ao seu painel intitulado “Um Mais Diferente De Outro”. Um conjunto de 30 obras de 32 x 45 cms cada realizados em bico de pena,acrílica e óleo sobre pvc expandido que , imediatamente, me remontou a um seu parceiro distante: o dadaista-surrealista Marx Ernst com sua coleção de colagens denominada “Uma Semana de Bondade” realizada em 1933, no levante do nazi-fascismo e cujas imagens, retratos da crueldade e da decadência burguesa da época, anteviam a catástrofe em andamento.
Faço esse confronto, esse acareamento histórico, para melhor compreender minha interpretação da sua abordagem.
Enquanto o expoente do surrealismo antecipava os tormentos por vir, na Europa do pré-guerra, você nos contempla com a interpretação da sua/nossa história pop/realista/fantástica. Bem menos catastrófica mas não menos instigante e abrangente que a do passado surrealista.
Substituições e acréscimos
“Brinquedo Proibido” que tive o prazer de visitar junto com José Alberto da Fonseca (proprietário e colecionador da referida obra) está impregnada de linguagem simbólica.
Conhecedor que sou da fotografia original utilizada como modelo para a tela que, mostra Picasso na praia cobrindo e protegendo, com o guarda-sol, sua mulher Jacqueline, numa performance, quase um “happenig”referencial daquele que constitui o mais antigo dos cerimoniais dos machos em relação às fêmeas : a dança da sedução. Atividade na qual os homens só perdem em extravagância e arte para os pavões.
Anoto as substituições e os acréscimos à imagem original que enriquecem, particularizam e recebem sua assinatura como nova obra. Jacqueline está substituida pela mulher de Guernica, trágica e lacrimosa, Picasso, talvez pelo esforço do trabalho de sedução, explode o coração em “pop” CLITCH” enquanto o mar de Cannes é substituido pelas ondas japonesas de Hokusai. Comento ainda, com José Alberto o momento que as cartas de Tarô tão bem definem a cartada do destino que alí acontece:
“A Roda da Fortuna” marcando o destino, o momento do acontecimento, selando a sorte para melhor ou pior e predizendo eventos inesperados a acontecer. “O Enforcado” retrata o próprio Picasso a quebrar o coração no seu esforço de sedução que o devora, ao mesmo tempo que tal sacrifício conduz a uma mudança, uma regeneração, a um renascimento. Transformações que um escorpião como ele soube fazer a vida toda.
Ao que José Alberto me respondeu: “Mas nem sei se Miguel sabe desses significados do Tarô....”. Ao que lhe refutei que o Tarô, como todos os símbolos e os ícones arquetípicos têm vida própria e idependem do nosso conhecimento e vontade. E ainda mais: por se afirmar um utilizador aleatório desses sinais e imagens Miguel está apenas encurtando, ao não postar o consciente entre eles e sua ação, seu encontro com o outro lado.
Mas não vamos aqui discorrer sobre cada obra da mostra. Ela está la´pronta para ser vista e “lida”para quem se interessar um pouco mais. Minha intenção, ao abordar algumas destas realizações, foi apenas um pequeno motivo para mostrar o quanto nelas se pode encontrar.
Quintal e fachada
O artista reafirma a elaboração do seu projeto de forma consciente e pensada e obedece o seu modelo estético. Repudia o onírico e nega o sonho em seu processo criativo.
E assume a não existência da paisagem/fundo para a sustentação dos seus personagens .
Admite, apenas, uma linha divisória imaginária, subjetiva que divide o quadro em plano superior e inferior como sendo a única orientação de referência que, sua postura dadaista, lhe franquia.
Peço-lhe licença para um penúltimo comentário a respeito da paisagem/fundo.
Vendo suas telas tenho a sensação que você as pinta do fundo para a frente, revelando muito mais o “quintal” do que a “fachada”, pela qual me parece você não se interessa.
E não haveria de ser de outra maneira para quem quer dizer o que você diz.
Mas não seria relevante; nesse processo que direciona o seu interesse pela vida e o trabalho - a busca pelo que está por dentro, por debaixo e por detrás- que você Miguel, ao pintar de baixo para cima, de dentro para fora, de trás para diante, incluisse alguns elementos de fachada no fundo físico da tela sacramentando, em definitivo, este fazer inverso?
O último comentário é a respeito do que você considera pejorativo na referência barroca que às vezes lhe imputam. Eu , pelo contrário, prezado Miguel, não consigo ver algo mais elogioso do que a alcunha de barroco, este estado d’alma característico das nossas entranhas Brasil/Mineirianas que tem tocado e acrescentado densidade a seres do porte de Aleijadinho, Niemeyer, Guimarães Rosa e tantos outros.
Quem sabe um dia, depois de você aceitá-lo, poderemos defini-lo como algo ainda mais transcendente, quase inclassificável e mágico , bem à sua altura:
Miguel Gontijo é um pintor pop/realista/barroco/fantástico.
Miguel e o Ornitorrinco
Trabalhos de Miguel Gontijo. Museu Inimá de Paula. Rua da Bahia, 1.201, Centro. Tel: (31) 3213-4320. Terça, quarta, sexta-feira e sábado, das 10h às 19h; quinta-feira e domingo, das 12h às 21h. Até 7 de janeiro. Entrada franca
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