Stutiferas Navis

Stultifera Navis –
(série de 32 pinturas, acrílica\óleo s\telas – 0,55 X 0,60 cm - executadas em 2014)


Nas matinês de domingo havia um seriado em que um personagem ficava imobilizado em uma mesa e apenas uma gota d’água pingava ritmicamente em sua testa até levá-lo a loucura. Não sei como era chamada (ou se tem nome) esse tipo de tortura, mas em minha cidade, junto a amigos que comigo viram esse filme, ela passou a ser denominada de “Tortura Chinesa”. Se estávamos acostumados a ver nesses seriados o mocinho amarrado com um pêndulo navalha balançando sobre ele, ou diante de uma serra elétrica estridente, ou preso entre paredes que movimentavam como uma prensa, por que essa “doce” tortura do pingo d’água me marcou tão profundamente? Creio que é porque as outras formas de torturas a morte era o destino e, na “Tortura Chinesa”, o destino era a loucura. A monotonia e a repetição retirando a possibilidade de viver. Por várias vezes já consertei torneiras que pingavam durante a noite atrapalhando o sono; parei tic-tac de relógios; mudei de poltrona no cinema quando alguém atormentado, assentado atrás, dá constantes chutinhos na cadeira da frente. Para mim mantras e terços nunca me levarão ao Nirvana. Ao contrário: levam-me ao inferno. A repetição rítmica, ao me espreitar, apodera-se de mim enfiando sua carapuça monstruosa de um animal delirante. Nesse momento escapo da domesticação dos valores e de seus símbolos e fico fascinado pela desordem, pelo furor, pelas impossibilidades e pela raiva obscura. Uma loucura estéril passa a residir no meu coração e grita alto como uma arara no cio.

Agora, em busca de meus segredos, descubro minhas figuras fantásticas. Uma profusão cavalariça de pernas e cabeças se transformando em embarcações e vejo-me deslizando pelo rio Reno, passageiro da Stultifera Navis, apinhada de loucos, bêbados, vagabundos e, até mesmo, dos patetas da cidade. Junto a mim está Sebastian Brant, um poeta, que relata em versos uma alegoria da nossa viagem a Norragônia, o Paraíso dos Loucos.  A lotação dessa nave é o inventário de 110 vícios morais capazes de nos levar a loucura.

E esses meus desenhos são o inventário da minha rotina de artista, preso a zona da tela branca, a qual não me oferece nenhuma resposta, pois respostas pressupõem decepções.
Sei que a repetição é uma tortura e eu me vejo torturado constantemente;
sei que fiz essa viagem tendo como companheiro o gravador Burgkmair;
sei que Foucault andou dando uns palpites;
sei que, por contradição, esses desenhos aprisionados nessas telas fazem parte de um jogo contínuo de repetições a procura de abrigo;
sei que Bosch também navegou nessa mesma nave, também a procura de abrigo;
sei que a matemática ainda não se escapou da sua rotina repetitiva;
sei que a realidade é seca, chapada e estanque e é como beijar uma parede branca;
sei também que o et cetera é o meu maior desejo de acontecimentos;
sei que não sou inteiro nem monolítico e nem tenho ponto de apoio;
e sei, também, que gosto de apagar pistas visíveis e inseminar metáforas,
que tenho necessidade genética de ser contra;
de ser escorregadio quinem quiabo;
de ser o que não sou e do que sou;
de rastejar em subsolos;
de ler com os olhos analfabetos teses em braile;
de ser um número primo;
de me estender, expandir, de esconder e de me perder

e se essas pinturas acontecem é porque como minha placenta todos os dias, ad infinitu.
Série exposta na Biblioteca Central da UFMG em Setembro de 2014. Pinturas em acrílica sobre tela coladas em mdf.





















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