Babel - Críticas - Por Rodrigo Vivas
A lição de anatomia do Dr. Gontijo
O leitor é um caçador que percorre terras alheias.
(Michel de Certeau)
A exposição de Miguel Gontijo que recebeu o título Babel, com curadoria de Augusto Nunes, é uma excelente oportunidade para acompanhar a produção recente do artista. O termo recente, aqui empregado, não deve denotar novidade pura e simples, pois releva a problematização de um conjunto de temas que já habitam o universo do artista. Ao entrarmos na galeria já somos interpelados pelo artista. Uma obra instalada na entrada da galeria ocupa grande parte do espaço. Somos praticamente encurralados, apertados entre a obra e o vidro da galeria. A sensação não decorre apenas da espacialidade da obra, mas também se realiza devido ao tema. Corredores prestes a iniciar uma competição e outro no limite de atravessar a linha de chegada. O problema é que nós estamos na “linha de chegada” e seremos atropelados pela força demandada para percorrer o último milímetro que definirá o final da corrida.
A curadoria investiu em uma definição de “labirinto”, mas parece não se concretizar ao ultrapassarmos a primeira sala e vermos espaços livres de fuga ou passagem. A estética do labirinto pressupõe sempre uma visão parcial. Nem toda separação em módulos significa um labirinto.
As primeiras salas parecem assumir um valor secundário, pois o próprio título da exposição nos leva a esperar a Babel. Seria a Babel um exercício retórico ou mesmo existe uma associação com a narrativa bíblica? E como as outras obras se relacionam a esse título? Seguimos pelas salas nos deparando com um universo que articula texto, imagem e mitologias de origem. Gontijo em uma das primeiras obras já constrói ou inaugura um universo de sentido: “os homens planejavam a construção de uma torre para chegarem aos céus onde, unidos e protegidos para sempre, evitariam sua dispersão pela face da terra”. Talvez seja o único momento da exposição que o texto assume o lugar de construção de sentido independente da obra em si. Essa afirmação não exclui a presença de uma bíblia com um universo imagético construído em seu interior.
Um universo mais orgânico é percebido em obras como Os Guardiões. Grandes referências culturais são expostas etiquetadas, assim como se expõe um produto em uma vitrine com escala de identificação e valor. Esse cenário solene de cabeças ilustres está em clara associação com urubus em pedestais compostos pela obra de Goya Saturno devorando um filho. Os urubus estão associados a balões de falas comumente utilizados em H.Qs, mas nada “dizem”. Estão em silêncio. Esse universo tem como “fundo”, mas não em um plano secundário cenas de H.Qs, com relatos sexuais, próximos da comicidade ou artificialismos não distantes de narrativas de filmes pornográficos.
A separação dos painéis nos conduz a um grande espaço de uma instalação que justifica o título da exposição. A Babel é uma exposição, mas também as outras obras não são menores. Mas do que se alimenta a poética de Gontijo, para utilizar um termo que facilmente se insere na proposição do artista?
Svetlana Alpers escreveu um importante trabalho denominado A arte de descrever: arte holandesa no século XVII. Alpers defende que enquanto a arte italiana se interessava por temas relacionados à mitologia e as narrativas bíblicas, a arte holandesa se concentrou nas representações de cenas domésticas e ditos populares. Tornou-se necessário construir uma nova metodologia para compreender imagens não clássicas que não seguiam o padrão do renascimento canônico. Nega-se, portanto, o paradigma albertiano e exige outros mecanismos de observação muitas vezes fornecidos pela “ciência” como nas proposições de Johannes Kepler. A arte holandesa exige a fusão de inúmeros elementos para a construção de uma narrativa coerente. Esse não é um desafio fácil, pois demanda articular várias temporalidades, inúmeros elementos, mantendo a coerência da ação.
Essa discussão não parece distante dos desafios enfrentados por Miguel Gontijo. Alguns podem se prender aos aspectos mais diretos e imaginar uma aproximação com as poéticas da Pop Art ou exercícios específicos do objet trouvé. Mas não existem elementos aleatórios e muito menos associação direta na construção da obra. Gontijo deixa isso a cargo do observador.
Gontijo é um palimpsesto cultural. Assim como sua obra, não julga – realiza. Reúne inúmeras camadas discursivas como imagéticas criando mitologias de origem. Por essa razão, as livres associações não podiam sustentar um universo tão trabalhado e cuidadoso como o de Miguel. Gontijo é sem dúvida um “caçador em terras alheias” ou o Dr. Tulp.
Rodrigo Vivas
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