Babel - Texto crítico de Marcos Hill


Miguel Gontijo
BABEL
Será que a figuração não mais assusta?!
Por Marcos Hill[1]

Ao ler os textos localizados logo na entrada da exposição “Babel” do artista mineiro Miguel Gontijo, alguém pode sentir, a princípio, o incômodo de uma certa incoerência. Pois, como imaginar uma proposta artística que evoque, simultaneamente, Sagradas Escrituras, Tesouro da Juventude, Warhol, Magritte, Tarsila do Amaral, Rembrandt e Mestre Ataíde?!
Mas basta passar o primeiro limite museográfico dessa individual que as próprias imagens ali dispostas encarregam-se de alertar o observador sobre o incômodo e a incoerência que o acompanharão até o final do percurso, não sem a presença constante de um fascínio arrebatador pelas miríades visuais que Gontijo generosamente nos apresenta, priorizando o encanto da pintura através da maestria de seus inconformados pincéis.
Dá inclusive para antever que tal generosidade com a qual o visitante é desde logo brindado não permanecerá “pura”. Mesclada com sentimentos tão densos e explosivos como a revolta, o inconformismo e a denúncia, vê-se passar, diante dos olhos, fluxos intermináveis de representações que garantem que a figuração ainda pode assustar. De todo modo, como dispositivo retiniano, ela sempre encantará os sensíveis!
Em todas as obras, a representação do ser humano protagoniza composições cujos recursos rementem à técnica da colagem. Exercendo sua plena liberdade de se apropriar de imagens já existentes nas mais variadas fontes de circulação, Gontijo evoca um procedimento dadaista de raiz, recortando, justapondo e sobrepondo vocábulos visuais que, já massificados, transversalizam a memória inteira de uma humanidade hoje perplexa com os impasses sombrios de um progresso anteriormente anunciado como portador universal de luz redentora.
Poderia-se, através de uma leitura ligeira, confundir tais imagens com devaneios surrealistas. Mas em obras como “Contos da Carochinha” de 2005 não é exatamente o que se ouve quando se insiste em encará-la. Inclusive, não seria impossível perceber sussurros tais como: ““Que os que entram, deixem fora todas as suas esperanças!” 
E a aventura visual prossegue à medida que se avança por esse “labirinto” de evocações ruidosas, evidenciando o impacto de uma cultura de massa que, ao informatizar o consumo, acabou por exaurir o campo da imagem com excessos intermináveis. São inúmeras as possibilidades de abordagem crítica sugeridas pelas pinturas de Gontijo.
A desmoralização do binômio Alta Cultura X Baixa Cultura se faz evidente. Eliminando classificações hierárquicas, o pintor mergulha no magma imagético, recuperando do excesso, fragmentos fadados ao apagamento. Como antropófago convicto, Gontijo vale-se inclusive da pornografia para encaminhar possibilidades interpretativas sobre o caos, como pode ser notado na obra “Guardiões”, de 2017. Seria fálico o desespero contemporâneo?!
Em sua paleta, o culto burguês à personalidade é desviado para a constatação da irreversibilidade entrópica. Tudo passa. Ninguém ficará para semente, não importando o grau de poder e/ou visibilidade angariado no campo da circulação da informação. Em “Bíblia Sagrada”, é a colagem mais do que tudo que nos lembra essa lição, nos aproximando da sempre atual reflexão sobre a vaidade humana: “Vanitas vanitatum, memento mori!” Lembre-se que morrerás! 
Amor e morte, sexo e degeneração, excesso e banalização contracenam, expondo a visceralidade de um corpo atormentado pela indesejável lembrança da impermanência. Em “Metabolismo” (2016), o tempo acelerado da pincelada contrasta com a caligráfia de tratados antigos, explicitando a ilegibilidade inalienável da qual nem Alexandria foi poupada. É o destino que o tempo impõe à cobiça e à compulsão pelo acúmulo tão demasiadamente humanas.
Estaria o artista estetizando a perda inevitável? Sugerindo que tudo está inelutavelmente contaminado, mais parece que Gontijo exacerba, como um Bosch contemporâneo, a onipresença dos vícios; como se seu esforço poético fosse a derradeira tentativa de um resgate impossível.  Um desejo subjetivo de resgate, mas com o compromisso de não ignorar gozo, arroto, náusea, gula e tantos outros exageros que marcam a condição dos mortais. Em verdade, pode-se mesmo destacar uma certa elegância que transforma o lamento desesperado em emergência trágica, dignificando o lugar do artista no mundo.
Não seria o caso de moralizar a insustentabilidade de uma inocência impossível. Melhor forçar o riso provocado pela ironia com a qual o pintor trata a overdose de tudo, narrando-a visualmente. O que para ele corresponde a inventar “um tempo que nunca existiu mas que é necessário para se continuar existindo”.
Do tratamento dado ao aleatório e ao aparentemente desconexo surgem novas esperanças nas surpreendentes associações. Livres, orgânicas, viscerais, orgiásticas, dispendiosas, elas são um expurgo simbólico da alienação, servindo como estímulo poético para a recuperação de uma pulsação vital sempre presente à flor da pele. Pulsação muitas vezes ofuscada pela avalanche de estímulos que invade os sentidos dos seres contemporâneos.
Não há linguagem que paralise o desespero da solidão. Mas pode-se brindar o que de lúdico resiste na prática artística, no âmago de toda capacidade inventiva!
Ao final dessa trajetória inquietante, Gontijo nos oferece uma ceia incomum: “Uma dúzia que é igual a treze, ou a Santa Ceia, ou Symposium, ou Os Doze Trabalhos de Hércules”. Em mais esta sobreposição de referências culturais, acontece uma espécie de entrelaçamento de sentidos supostamente díspares. Provisórios mas revestidos de uma solidez crítica na qual mitologia, religião e história são evocadas para pontuar uma experiência estética que não se interrompe com o fim da exposição. Porque impregnada de inquietações que marcam a alma desse ser humano, brasileiro e artista.
O visitante depara-se então com “Regurgito ego sum” Isto é Brasil, quase como uma porta que dá continuidade ao fluxo ao invés de interrompê-lo. Trata-se de obra na qual a decepção do ser brasileiro atual revela-se através de um lamento. De fato, lamentável é a maldição de uma classe dominante que insiste, há séculos, em “vender” o país e o povo às grandes corporações internacionais, em troca da manutenção de privilégios.  Regurgitar este amargor seria uma forma simbólica de protesto contra a colonização da própria alma.
No caminho de volta à entrada, ainda se lê um último lembrete: “A arte, afinal, não serve para nada. Ela não é uma necessidade, e, sim, um desejo.”
O que resta é um agradecimento comovido a Miguel Gontijo por sua resiliência em preservar o desejo que transforma sua própria pulsação vital de homem sobrevivente das intempéries existenciais em Arte.



[1] Marcos Hill é professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Escola de Belas Artes da UFMG. Vive e trabalha em Belo Horizonte.


fotos: Daniel Moreira

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