Miguel Gontijo para o blog Fora da Pauta - Elisa Arantes

Entrevista: “Vale mais um idiota que faça qualquer coisa do que um artista prudente”, diz Miguel Gontijo

Em exposição na principal galeria do Palácio das Artes, o artista plástico de Santo Antônio do Monte (MG)  fala sobre sua bem-sucedida carreira e seu estilo inquietante
Ele deixou a medicina de lado para estudar história e filosofia. Aos 68 anos, Miguel Gontijo é um dos nomes mais expoentes da arte contemporânea: “Minha trajetória nas artes plásticas nunca foi determinada por mim. Aconteceu.”
Se as coisas aconteceram naturalmente, a exposição no Palácio das Artes é mais uma prova de uma carreira sólida e contundente. Vencedor do Prêmio Mário Pedrosa na categoria “artista de linguagem contemporânea,” realizado em 2010 pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), Miguel reafirma a atualidade de suas obras com Babel.
A metáfora com a Torre de Babel, do Gênesis não é por acaso. Assim como nada ali é. Pinturas, quadros, objetos cuidadosamente dispersos no ambiente compõem a crítica do artista. Os textos na parede, propositais ou não, são uma forma de “respiro”, uma pausa para o pensamento individual diante de tão perturbadora forma de expressão.
A expressão, no caso, fica por conta dos questionamentos que as mais de 60 obras provocam no tão bem construído labirinto. O visitante faz seu próprio caminho em meio ao caos da Babel de Miguel: o excesso de informação e o problema da desinformação dos dias atuais.
A seguir, Miguel fala sobre carreira, processo criativo e sítios imaginários:
Fora da Pauta: Em 2016, sua exposição Almanaquequestionava a superficialidade da informação. Agora, em 2017, Babel abrange o excesso de informação dos tempos atuais. Qual a relação da comunicação com a Torre de Babel, do Gênesis?
Miguel Gontijo: A Babel é mais um “edifício” abandonado por falta de verbas e toda a enxurrada de justificativas despropositadas que os políticos nos fazem ouvir. A minha Babel e a Babel bíblica não possuem o mesmo propósito. Se a do Gênesis tenta alcançar o céu, a minha aprofunda-se nas artimanhas humanas.
Nós estamos vivendo um momento em que a informação é muito rasa, e, ao mesmo tempo, do excesso dela. Mesmo assim, nos sentimos ou somos desinformados. Antigamente, bastava ler o jornal e ler um livro… Você sente, também, essa mudança?O mundo virou uma grande vitrine. A informação que se vê hoje não passa de manchetes, e nem sempre correspondem a realidade. O jornal e o livro de antigamente também não eram fidedignos. Eu acredito que informação é uma busca interior. Sou eu que devo lapidá-la, checá-la para encontrar uma resposta que me satisfaça. O mundo está aí para ser decifrado.
Em meio a esse caos como a linguagem pode ser preservada?A linguagem é uma forma de arte e tem por dever ser dinâmica. Não dá para preservá-la. É bicho solto, camaleão. Ela se adéqua [sic] ao tempo e ao espaço e está em constante serviço do homem.
Você desistiu da medicina e optou pela história e pela filosofia, porém, suas obras possuem uma forte referência sobre o corpo humano. Como isso se dá no seu trabalho, na construção do seu pensamento?
Hoje, não mais acredito que abandonei e nem desisti de nada. O momento me fez optar. Tomei decisões que, muitas vezes, digo ter arrependido, mas, é o que tinha de fazer naquele momento. Não fiz opção em desenhar corpos por conhecer anatomia. Conheço anatomia o suficiente para afirmar que muitas coisas que faço no desenho está errado em relação ao corpo humano e correto em relação à estética. Talvez a minha referência sobre o corpo humano seja indagações que faço sobre mim mesmo. Uma forma de oráculo. Acredito que toda minha obra seja um autorretrato.
É de Schopenhauer a frase: “o mundo é minha representação” Todas as coisas que sei eu “inventei” e guardei dentro de mim. E é nesse corpo que retiro o material para dar sentido a minha vida e ao meu trabalho.
Como o estudo da História e da Filosofia podem contribuir para se ter mais entendimento sobre a vida?A História é fato, é vivência e a Filosofia são as indagações que buscamos para prosseguir e dar sentido à nossa vida. Não dá para ser contemporâneo sem estar preso a sua cultura. O tempo é o nosso senhor absoluto.
Quais foram suas referências e como elas ajudaram na sua formação como artista plástico?A minha grande referência chama-se Monteiro Lobato. Tudo que sou partiu do Sítio do Pica Pau Amarelo. A partir de Lobato, também criei um sítio imaginário, no qual vou acrescentando coisas e mais coisas, desde que me entendo por gente. É como se eu tivesse vivido nele. E, “ali”, a biblioteca do Visconde está cheia de histórias em quadrinho, que copiava exaustivamente, quando criança, aprendendo a desenhar.
O primeiro desenho que copiei e acreditei foi ensinado pelo mestre Joe Shuster, o Super Homem. (… e Marge, através dos patins e da neve da Luluzinha.)
Depois, as estantes foram preenchidas por outros gibizeiros, tais como Crumb, Quino e Crepax. Lá, também está Ray Bradbury, García Márques, Bachelard, Eco, Fernando Pessoa. Na sala estão os quadros de Bosch, Brueghes, Picasso, Magritte, Bacon, sempre tendo alguma coisa nova a me ensinar. Ah!… também tem Farneze e Joseph Cornell espalhado por toda casa. No meu quarto as paredes estão forradas com Heinz Edelman, William Kentridge, Peter Blake, Tom Phillips, Lindner. Na cozinha não mudei quase nada. Prevalece o arroz, feijão, bife e os bolinhos de chuva. Na dispensa, as prateleiras estão repletas de sopa Campbell’s, de sabão Brillo, do fermento Royal, do pavoroso gosto do óleo de Fígado de Bacalhau. As cadeiras da varanda foram trocadas pelas do Charles Eames. (Cheguei até a convidar o arquiteto Calatrava para fazer uma reforma na casa, mas desisti.) Buritizeiros atapetam toda minha visão. Uma beleza só! Fellini é visitante exclusivo. Depois apareceu Peter Greenaway para confundir tudo. 
Tal qual Dona Benta que vai do saci a mitologia grega, esse sítio se deve também aos livros condensados de Reader’s Digest; as fotonovelas do Grande Hotel; as festas de reisados; aos desfiles de misses televisados; as rádio-novelas Gessy-Lever; a Gisele, espiã nua que abalou Paris; as garotas do Alceu; aos catecismos do Zéfiro; aos hinos religiosos; ao medo de Alziro Zarur; as colunas do Ibraim Sued; aos seriados do Shazan; aos boleros e ao Teixeirinha. Enfim, confesso, minha história é feita de blackout. Tenho que colocar letreiro na minha vida para que ela se torne glamorosa.

Uma vez, na faculdade de jornalismo, um professor de arte e comunicação disse que estamos vivendo uma época sem referência, que se quisermos, temos que buscá-la nas décadas anteriores. Como você vê a arte que é feita hoje?Não concordo com seu professor. Por mais que o mundo tenha se tornado um grande caldeirão, ainda temos grandes referências para nos apoiar. O que acontece é que o mundo ficou mais aberto e muito ventilado. As coisas são efêmeras, mas não menos contundentes. As Artes Plásticas teve até que mudar de nome: passou a se chamar Artes Visuais. Isso para que possa se expandir ainda mais. Com isso, acho eu, ela virou uma grande lata de lixo, onde tudo cabe, tudo serve. Não vou julgar, pois, isso cabe a História decidir. Só sei que vale mais um idiota que faça qualquer coisa do que um artista prudente.
Você desconstrói imagens já conhecidas e constrói um trabalho inteiramente novo, cheio de significado, ao mesmo tempo em que propõe novas interpretações. Como se dá seu processo criativo?Se Velásquez consiste em pintar o instante do tempo, Picasso nos ensinou a desconstruí-los. Estou de pernas abertas apropriando da diversidade de imagens que me são oferecidas. Em total fascínio pelo oposto, pela diferença e pelo escancaramento. Nada é dispensável. Tudo é substantivo. Não sei se tenho estilo, pois sou promíscuo. A minha Babel fala muito em antropofagia e, assim, ela fala também de mim. Devoro o estrangeiro buscando superar a passividade da imitação e da repetição, por meio de uma assimilação profunda. Oswald de Andrade diz isso melhor: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”
A liberdade e a originalidade que permeia seu trabalho nos dá a sensação de que algo novo está sendo construído. De que nem tudo é efêmero, de que nem tudo é comercial. Como o capitalismo afeta a arte contemporânea?Não sei. Pinto para mim. O outro é consequência, mesmo sendo ele o objetivo essencial.

Da mesma forma que outros artistas colocaram seus cavaletes diante de uma paisagem ou de um nu, eu o coloquei diante da história da pintura e dos símbolos contemporâneos. “Minhas paisagens” pintadas não passam de minhas preocupações existenciais. Assim, meu trabalho caracteriza-se por capturar imagens que fazem parte de nossa memória coletiva, do nosso imaginário, da educação, dando-lhes uma nova representação e acrescentando valores polissêmicos. Formalizo um cosmo plástico que fica a serviço da criação. Tento desenvolver a minha prática pictórica como ideia. O uso de objetos de consumo e de obras de outros artistas é no intuito de colocá-los sob novas condições. Provocar a complacência da interpretação renovada e desestabilizar a “beleza estabelecida”.
Não tem como não ver sua exposição e não sair afetado positivamente por ela. É uma espécie de diálogo interno que ocorre durante e depois da observação. Você consegue mensurar a impressão que seu trabalho provoca no público?Não consigo. Isso é impossível. Quando termino um quadro ele está completamente contaminado de mim mesmo. Qualquer juízo de valor que eu lhe atribuir não pode ser justo. Eu me norteio com comentários dos espectadores e concepções comparativas.
Da mesma forma como um espectador, ao olhar uma obra, a recria, de acordo com o seu conhecimento e vivência, eu faço meu quadro. Em síntese, eles são o espelho do espelho no espelho.
Crédito: Elisa Arantes
Se você olhasse para sua trajetória, das primeiras obras até sua exposição atual, como você se definiria?
Quando foi lançado o meu livro Pintura Contaminada eu agradeci aos patrocinadores dizendo que eu só pude dimensionar a minha carreira quando vi que eu tive um percurso, uma persistência, uma coerência, que, para mim, só pôde ser visualizada através da obra concisa nesse livro. Ao longo da vida, eu fui fazendo, sempre e constantemente (e, essencialmente, obsessivamente) até que o trabalho se apresentou como um registro de toda minha existência. Desenho desde que nasci, compulsivamente. Certa vez, disse que aprendi a desenhar porque não conseguia enturmar com meus companheiros que jogavam bola e nadavam em rio. O desenho era um “bilhete” para que eles me aceitassem. Assim como eu não sabia acompanhá-los, eles não sabiam desenhar. Ainda acho que pinto pelo mesmo motivo. Minha trajetória nas artes plásticas nunca foi determinada por mim. Aconteceu. Já quis ser músico, diretor de cinema, chofer de caminhão, médico, escritor e uma infinidade de outras possibilidades. Artista plástico, não. Mesmo com contradições, eu me defino como um cidadão feliz. E, grande parte dessa felicidade, obtive do meu trabalhoadvindo da arte.
Não perca! A exposição vai até o dia 20 de agosto. Antes, faça um tour virtual:
Em tempo: no mês de agosto, a exposição sofreu uma intervenção do artista. Segundo Miguel, o objetivo da intervenção era instaurar um caos organizado, deteriorando-se e transformando-se num aglomerado de lixo. “Por problemas operacionais a intervenção acabou se transformando em souvenir, ou, como queira, numa parede de ex-votos. Deveria se transformar ainda mais, ao acabar a exposição: numa grande fogueira. Mas, como acender uma fogueira daquela altura na Avenida Afonso Pena? Tentamos viabilizar, mas não conseguimos. Dei-me por satisfeito assim mesmo.”
A exposição vai até o dia 20 de agosto na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard do Palácio das Artes.
Horário: Terça a sábado – 9h30 às 21h; domingo: 16h às 21h
Informações: (31) 3236-7400
Conheça mais sobre Miguel Gontijo.

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