"Nunca vi algo parecido" - Ensaio de Gladston Mamede sobre Babel

Ainda bem que acabou: hoje é dia 20 de agosto e estão desmontando a exposição de Miguel Gontijo. Babel esteve tempo demais no Palácio das Artes, justo na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard, de frente para a Avenida Afonso Pena, no coração da Capital das Alterosas: aquela que foi um Belo Horizonte daquelas que ainda são as Minas Gerais das barragens rotas. Aquilo foi uma provocação inaceitável, um murro, um soco, um linchamento, uma ofensa a tudo e todos. Um ato de terrorismo pictórico contra nosso conformismo pop, num tempo em que os mais humanos se preparam para sacar o lobo de dentro de si e fazer uma farra de sangue com os cordeiros. 

Entrei pela porta do dragão algumas vezes; a primeira, na abertura – que melhor fica quando é chamada de vernissage, já que o francês abre melhor que o vernáculo. Se bem que os publicitários sejam religiosamente fiéis ao inglês – the oppening nigth! -, no que estão sendo seguidos até pelos advogados que, na esperança de honorários empresariais e yankees, deixaram o latim para lá, ele que já morreu tantas vezes. Voltei outras vezes para ver se conseguia digerir aquilo tudo, vendo pobres coitados debruçados sobre as peças miguelgontijianas, buscando detalhes, comentando isso ou aquilo, sem perceber que tudo não passava de um acinte: o artista cuspia na cara da gente.

O pior é ver que ninguém reclamou desse milagre luciferiano – por que Deus não varia aquilo de jeito maneira! A multiplicação dos Miguéis Gontijos é obra do tinhoso, o inominável. Fui à exposição de um e, ao embrenhar-me no labirinto que montou Augusto Nunes-Filho, o curador, encontrei uma exibição de vários, o que é indecente se considerarmos a criatividade e a técnica capenga que faz com que outros se mantenham na replicação do mesmo, como um disco que não consegue vencer o furo, retirando-nos o prazer dos pequenos estalidos que a agulha não pode mais buscar.

Mas é preciso denunciar isso e pedir providências. Nunca vi algo parecido associado a uma só pessoa. Muitos se confundiram e acreditaram piamente que era uma coletiva já que, em cada volta e revolta do labirinto, surgia um conjunto de obras com identidade própria, como se fosse um outro artista. Não era! Mefistonianamente, Miguel Gontijo se multiplicava em estéticas e vocabulários diversos, se cambiava, se travestia para dizer outras coisas, para provocar de modo novo, para contaminar. Agora percebo a semelhança entre ambos: se não há identidade, há fraternidade. Acautelem-se. 

Mas não foi isso? Na exposição de fulano e de fulana, vi tanto do mesmo: um chapado com variações, como se um carimbo ou chancela que, retocado para dar diferença, reiterava-se modorrenhamente. Então, vem Babel trazer essa multiplicidade de universos que partem de um só artista? Um nas acrílicas, outro nos pequenos desenhos, outros nos grandes desenhos, outros nos objetos (e uma seção de objetos assim, outra seção de objetos assada), outros nas instalações, nos pratos, nos bonecos estilhaçados, nas quase esculturas que eram, a bem da verdade, mais que esculturas. E querem me convencer que não há um pactum diabolicum

Atentem para a sabedoria esotérica e compreendam. Está tudo na carta XV: Le Tarot de Marseille: le diable: o diabo. O Arcano XV! O diabo fascina e desperta os instintos mais viscerais, liberando uma energia passional, violenta, como o desejo de poder nietzschiano: vontade de potência que faz o hiper-homem (homos superior): o ser humano além do ser humano, a se revelar no prazer dos corpos que se socam e sangram numa luta de boxe ou full-fight, sem perceber que, mesmo nele, o inocente ele, isso é o átrio da antropofagia.

Ainda bem que desmontaram a exposição – não iram queimá-la? Ouvi dizer que haveria um incêndio controlado, com socorro do Corpo de Bombeiros. Desistiram? Por que? Dorian Gray não hesitaria se pudesse queimar o seu retrato. Por que vamos hesitar se podemos dar fim a esse retrato tão fiel do que somos? Possessivos, ambiciosos, passionais, avaros (sem o assento que marca o erro da prosódia), dominadores, ciumentos, indecentes e tudo o mais que se via e revia na Babel de Miguel Gontijo. Por sorte, acabou: estão desmontando a exposição. Voltemos todos para o pasto pois o prazer de ruminar o capim meloso é melhor e a carne que não está assustada é sempre mais macia. E se formos protestar, que seja por cerveja, pois em Kobe ela é farta a modo de o Wagyu marmorizar.

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